O Dia da Virada

1.      Mania

Quero amor que seja assim, tal e como foi

Que você me parta em luzes e depois me faça dois

Um pra ser escravo teu, outro teu senhor

Um pra não saber ouvir, outro confessor

Um sofrer, sangrar por ti, outro doido de alegria

Um que dorme anestesiado, outro que arrepia

Quero amor que seja assim, da cabeça aos pés

Coisa de um, de cem, de mil, least and never last

Meio calmo, meio pavor, meio prazer, meio dor

Meio chegar, meio fugir, meio fiel, meio mentir

Meio mel, meio amargor, meio pedra, meio andor

Meio noite, meio dia, quero amor que seja assim

Mania

 

2.      Tudo e Nada

Quase nada que se tem é o quase tudo de outrem

Quase tudo é o nada quase que se percebe

Eu te tenho um pouco muito e tu me tens muito pouco

Quase te conheço e em nada me entendes muito

Tudo e nada misturados dão nós dois ou quase

Tudo talvez nos resuma, nada talvez nos decifre

E assim, sendo tudo do céu, tudo do ar

Somos da luz, tudo de nós, nada de um

 

3.      Noite de Maré Cheia

É duro confessar que volto a respirar ao ver você chegando

Pra me denunciar, os meus olhos covardes acordaram chorando

Cheguei a imaginar a vida sem você e sem os seus encantos

E posso até jurar que cortaria os pulsos, se não doesse tanto

É duro suportar esse eterno partir querendo ficar

Em cada beijo seu, sinto um travo de adeus

Mesmo assim, quero mais, não consigo parar

Se você vai embora, esvazia meus braços, me deixa doente

E, só pra lhe buscar, eu iria ao inferno, se não fosse tão quente

Somos iguais, o mar e a lua, o pescador e a sereia

Quando a gente se encontra, é noite de maré cheia

 

4.      Labirintos

Todo gesto de quebrar me causa medo

Nasci cedo demais, não tenho pressa

Todo resto que sobrar é alimento

Nostalgia, o lado avesso que se preza

Labirintos

Tão iguais a esses ritos frios e formais da natureza humana

Eu te amo, tu me amas, somos verbos racionais

Minha cama, tua cama, quando vamos ser um só?

 

5.      A Verdade e a Vida

A palavra pega o rumo, sai zoando a garganta

Quanto mais sincera e viva, mais esse meu povo canta

Pensamento vira estrada

O chapéu e as alpargatas são heranças, são pousadas

A saudade me desata

E mesmo escolhendo errado, busquei o certo

A alma lavada em pranto, o peito deserto

Cismado que andava a esmo, eu estava perto

Muito mais longe ficava quando, em vão, planejava

Cada no espaço aberto

E mesmo negando aos olhos vi a verdade

Raízes da natureza sob a cidade

Quanto mais o homem sabe do universo

Mais transforma suas dores em ternos versos e amores

Mais transpira liberdade

 

6.      Só pra te Conhecer

Um frasco diminuto a esconder desejos e perfumes

O bálsamo e a mirra, essa mulher

Trazendo sóis nos seios

Verte-me vida, verte-me voz

Quero cantar minha princesa

Doce visão da delicadeza

E eu, que andava pensando em morrer

Fui então descobrir

Que havia nascido só pra te conhecer

 

7.      Queimada

Tem gente serrando a mata em busca de lucro fácil

Corta e queima, esfola e mata bichos de todas as classes

Cardeais, jaguatiricas, araras, tamanduás

Jabotis e micos-pretos, tatus e lobos-guarás

Óia lá!

Floresta passando fome, vejam que bicho que dá

Do esbanjamento do homem, nem a Deus pra reclamar

Tem gente serrando a mata, nós não podemos deixar

Nós vamos virando bichos e eles vêm pra nos queimar

Madeira!!! Fogueira!!!

 

8.      Novo Sol

Eu sei a dor que nasce do perder e o sabor amargo do partir

Mas sei, igual, que o sal da lágrima dá fonte à seiva doce do sorrir

É só deixar que o tempo amanse o corpo

E o amor ardente se transforme em outro

É só abrir os braços, sem esperas

E ser um rio que lava a tez da terra

Eu seu da voz que cala, ao ver trair

Do coração que pede pra morrer

Mas sei, também, que vem do ato de sonhar

O paladar divino do viver

É só manter aceso e puro o lume

E o encanto vence a escuridão e a bruma

É só rasgar a seda vã dos medos

E o pão da paz virá saciar a todos

Tão simples é querer ser sim, sem nada ter

Cantar e assistir assim, o novo sol nascer

 

9.      Peso-Pesado

Mais um sonho que não realizei, mais um verbo que não conjuguei

Mais um dia que joguei pra trás, outra história que desperdicei

Mais um passo que deixei de dar, mais um livro que deixei de ler

Mais um olho que cegou de ver, outro velho amigo que esqueci

Cada dia me parece mais um peso-pesado em cima de mim

Cada noite me suporta menos e eu acordo empapado em suor

Esse mundo anda cada vez pior

Mais um louco que varou por mim, um garoto com um cano na mão

Mais o medo, a morte, a solidão

A avenida, enfim, parou pra mim

Mais alegorias e mais multidões, doces fantasias de Chico Buarque

Velhas meretrizes do apocalipse e a dudiana-sandice-do-brasil-fome-zero

Cada dia me parece mais um peso-pesado em cima de mim…

 

10.   Meu Amor é Todo Seu

Minha mãe que vem da roça

Me permita Deus que eu possa te ver, sem pestanejar

Todos já foram dormir e eu ainda estou aqui esperando ocê chegar

Toda vez que estou cansado, estou descrente, marejado

E o coração parece bater querendo parar

Corre pra jurar sorrindo que a boa sorte está vindo

E a vida vai melhorar

Bem me lembro, era domingo, e o céu de um azul mais lindo

Parecia lhe adornar

Cada nuvem que passava, passarinho que avoava

Juro, eu queria parar!

Quando vem me dar boa noite, minha mãe encosta o rosto

Bem quentinho, junto ao meu

E assim, aprendo dormindo como é bom ficar ouvindo

Esse jeito de falar

Meu amor é todo seu, meu amor é todo seu, meu amor é todo seu…

 

11.   O Dia da Virada

Quem sabe os astros, em tempestade

Chovendo ouro sobre a nossa terra

Empanturrassem os poderosos e eles parassem de explorar as guerras

Tanta riqueza com pouca gente e um troco raso pra humanidade

Enquanto a Corte sorve champanhe, crianças morrem, por impunidade

Cadê justiça? Manda chamar! Será que um dia o povo todo vai mamar?

Poupança e dólar, modismos imbecis, charlatanices da televisão

É a seringa da socialite, sugando o sangue da população

Basta decência, noção de honra, pro cidadão ver qual é o lado certo

São sempre muitos milhões a sustentar o poder

Só meia dúzia senta pra comer

Cadê justiça? Manda chamar! Será que um dia o povo todo vai mamar?

Esse recado é geral

E especial pra você, que diz que paga e anda pra política

Acha que cumpre legar o seu papel oficial

Avesso a qualquer forma de autocrítica

Toma cuidado, neném, a casa é tua também

Não vai sobrar empada sobre empada!

Dança o palácio meu bem, o rico sai sem vintém

E o pobre inventa o dia da virada

Cadê justiça? Manda chamar! Será que um dia o povo todo vai mamar?

 

12.   Dona Verdade

Dona Verdade, deixa que eu prossiga só

Não quero andar ao lado de seu corpo nu

Pois a mentira é mais bonita de se ver

Vestida em gola rulê e feita pra não descobrir

Deixa que eu prossiga só, sem ver o seu corpo nu…

A minha amada me quer bem junto dela

Mas, mesmo assim, não viu que dentro dos meus olhos

Existem soltos esses guris curiosos que fazem água de rodo

E fogem pro fundo do corpo

Me quer bem junto dela, sem ver dentro dos meus olhos…

Quando recordo as correrias da infância

A diferença está no fato que cresci

Pois continuo pulando por esse mundo que parece dar em nada

E nada, assim, vai me bastando

Quando recordo da infância, vejo que nunca cresci…

Sem ver dentro dos meus olhos, deixa que eu prossiga só….

 

13.   Guarda as Cascas que Dá, Brasil!

Imagine um monarquinha tomar conta do Brasil

Com direito a light-miséria e filés de Chernobil

Patriotadas, abobrinhas, basófias, firulas vãs

Proxenetas, caudilhos, venenosas cortesãs

Como primeiro sinistro, um perverso Ali-Babá

Casquilhão engomadinho, vero cappo tropical

Limparia nossos bolsos com apetite invulgar

Para abarrotar os cofres do grande circo venal

Dentro de poucas semanas, um certo príncipe herdeiro

Corroído pela inveja, daria um tiro certeiro

Lançando à ira do povo o desafeto fraterno

Salve a Inquisição, McCarthy e o canibalismo hodierno

Guarda as cascas que dá, guarda as cascas que dá, Brasil!

Guarda as cascas que dá, Brasil!

Mandarins e bacharéis, com gestos de primas-donnas

Doariam seus anéis pra funérea maratona

As galés, ensandecidas, clamando por liberdade

Vendo os ladrões no comando, exigiriam sociedade

Pra arrematar o estropício, um valete açulador

Daria show de detalhes e eca no ventilador

A catrefa, reunida, diria: Rei morto, rei novo!

Na manga, um futuro dindo pra deitar o verbo no povo

Finalmente, a recompensa: Eis a cabeça do tolo!

E, enquanto a plebe devora, a quadrilha reparte o bolo

O ogro xuxa a coroa e muda o time de escroques

Pro resto, joga bananas que este vem a reboque

Guarda as cascas que dá, guarda as cascas que dá, Brasil!

Guarda as cascas que dá, Brasil!

 

14.   Batatinhas de Sábado, Purê de Domingo

Nas bocas dos operários, dos artistas, faltam os dentes e o pão

Derrota é norma da conquista e ódio, do coração

Não adiantam enfeites, lustres, copos de cristal

A cama e o travesseiro têm o mesmo fim, o pesadelo é igual

A valsa virou rotina, nem um pé cansa ou protesta

Passividade bovina virou atração da festa

Não adiantam enfeites, lustres, copos de cristal

A cama e o travesseiro têm o mesmo fim, o pesadelo é igual

Resta sempre esse jeito de levar a vida rindo

Batatinhas de sábado viram purê de domingo

 

15.   É Certo que Morri

Confere as coisas da casa, se tudo está no lugar

Cinzeiros, quadros, cadeiras, teu canto de tricotar

E fecha a porta da rua com duas voltas por dentro

Pra que não saia nem sobra e que não entre nem vento

Respira fundo e acredita no que disse ainda hoje

Sim, é certo que morri, mas ainda me encontro espalhado por aqui

Caminha até a cozinha, requenta um pouco o jantar

Lembra alguma coisa minha e tenta reanimar

Um gesto por trás da mesa e uma frase esquecida

São como véus que se abrem, trazendo sopros de vida

Seca teus lábios e entende, eles guardam o que fui

Sim, é certo que morri, mas existo entranhado no que sai de ti

Quando estiveres no quarto, sem saber como deitar

Evita falar sozinha e trata de acostumar

Que meu ligar nesta cama agora estará vazio

Nas tuas noites de insônia, nas tuas horas de frio

Apaga as luzes sem medo e lembra o que prometo

Sim, é certo que morri, mas meus olhos continuam velando por ti

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